[A palavra do dia na Enciclopédia Ilustrada]
A minha mãe era filha de um alfaiate. Em miúda, quando passava férias na
casa desses avós, os meus dias tinham a música do seu trabalho: o
zum-zum da correia na roda do pedal da Singer, o tac-tac-tac-tac da agulha na
fazenda, as conversas solenes com os clientes que vinham encomendar um #fato,
o correio que passava a meio da tarde para deixar o "Comércio do
Porto", a voz da minha avó a ler para o marido as notícias já velhas de
dois dias. E o pedido "ó Rosa, faz-me uma fogueira que eu hoje vou ter
de passar a ferro".
(Não é que eu seja assim tão velha, Portugal é
que era um país muito arcaico na altura em que eu nasci. Na minha casa
havia um ferro eléctrico; na do meu avô materno um ferro de brasas; a
minha avó paterna esticava muito os lençóis e guardava-os na arca com a
outra roupa por cima, para ficarem bem prensados; e numa casa onde fiz
férias aos nove anos usavam ferros aquecidos à boca do forno a lenha
para passar a roupa sobre uma enorme mesa de pedra. Foi no verão do
Watergate, e perto de Cabeceiras de Basto, numa aldeia sem
electricidade, ainda passavam a roupa assim.)
Todo aquele trabalho
de fazer fatos de homem me fascinava: os fregueses que vinham com um
retalho de fazenda muito bem dobrado, ou então com o fato velho do pai
para fazer um novo ao filho, o processo moroso de tirar as medidas e
anotar num caderninho segundo uma sequência sempre igual que dispensava
títulos, o momento grave de cortar o pano, o zum-zum tac-tac-tac-tac de
coser as peças. E depois a prova, "hum hum, tenho de apertar mais aqui".
A minha avó parava a leitura em voz alta do jornal e ia abrir as
costuras, enquanto o meu avô ia adiantando as presilhas. Depois ele
cosia de novo as peças de pano, e ela dedicava-se ao ingrato trabalho de
virar as malditas presilhas.
Na data aprazada os fregueses vinham,
vestiam, ficavam satisfeitos. O dinheiro - uma enormidade de dinheiro -
passava das mãos calejadas e sofridas de uns para as mãos, também
calejadas, sofridas, por vezes queimadas, do meu avô. O fato novo era
embrulhado em papel e saía da casa - um embrulho precioso.
Era no tempo em que se chamava artista a quem tinha tanto saber nas mãos.
E era no tempo em que as pessoas compravam muito menos, muito mais duradouro, e com muito mais sacrifício.
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