22 janeiro 2018

"WC"





Ora aqui está finalmente uma palavrinha com qualidade enciclopédica. Tanto para dizer!
Nem sei por onde começar. 


Começar talvez pelo significado: WC é a abreviatura de Water Closet, uma retrete que se limpa com um fluxo de água que sai de um tanque especial para esse efeito. Por algum motivo que desconheço, o nome WC passou a ser associado a casas de banho públicas. O que está errado, porque as árvores e as esquinas e os umbrais das portas e assim também são usados como casas de banho públicas, e não têm uma retrete com autoclismo – o WC propriamente dito.

Se já estou a falar de casas de banho públicas, tenho de referir o tema do momento, que é as casas de banho para as pessoas que não se vêem nem como masculino nem como feminino, ou que se vêem com o sexo diferente daquele que o seu corpo parece ter. Confusões. Na Alemanha tem-se falado muito disso, e algumas cidades decidiram ter casas de banho púbicas para um terceiro género. Claro que o pessoal protesta, "ai o nosso rico dinheirinho dos impostos", e “tantas crianças a morrer de fome em África, e estes aqui preocupados com casas de banho para neutros ou transpassados”. O que me obriga a fazer um parágrafo, porque o caso é grave:

A ignorância é uma coisa muito triste, e a falta de sensibilidade que lhe anda associada também.
É importante saber isto: a taxa de suicídios entre pessoas que não cabem no esquema homem/mulher é maior do que nas que não têm problemas de identificação do seu sexo. Nada justifica uma norma – seja ela legal, moral, ou tradicional – que provoque um sofrimento nas pessoas tamanho que as leve à depressão e ao suicídio. Sim, bem sei que não é só a questão das casas de banho públicas. É toda uma mentalidade generalizada, que inferniza a vida dessas pessoas e lhes dá a sensação de não terem lugar na nossa sociedade.
Voltando à questão de não gastar o nosso rico dinheirinho dos impostos para ter um terceiro tipo de casas de banho públicas: isso resolve-se facilmente - basta mudar as placas à porta, “WC com urinol” e “WC sem urinol”. Não é caro, e aumenta muito a qualidade de vida de alguns de nós.
Também há quem se queixe da promiscuidade e da falta de intimidade nas casas de banho que não separam bem os sexos. Nem sei que vos diga, porque se levarmos isto mesmo mesmo mesmo a sério é preciso pensar também no perigo que as mulheres lésbicas representam nas casas de banho para mulheres, e idem para homens gays nas dos homens. E depois há as pessoas bissexuais, essas autênticas Mata Hari das casas de banho públicas. Uma pessoa põe-se a pensar nessas possibilidades todas, e só lhe apetece levar um peniquinho de casa...
Ou fazer como já faz nos aviões, nos comboios, no De Young Museum em San Francisco e no WC à entrada do refeitório do seminário diocesano de Leiria, que também é unissexo. Tenho fotos dos dois últimos exemplos, para provar estas afirmações, mas não me apetece ir procurá-las.

Mudando de assunto, para regressar ao início, o sentido inicial de WC, a tal retrete com água - aqui vos convido agora para um passeio pelas sanitas do mundo.
Há as portuguesas, aquelas completamente normais como as que conhecemos, a gente senta-se, plooooop, puxa o autoclismo, limpa com a escova, baixa ou não baixa a tampa (e sujeita-se à eventual discussão familiar), lava as mãos, adiante.
Há as americanas, parecidas com as portuguesas mas com ploop em vez de plooooop porque o nível da água está muito mais alto, nas quais quase nunca é preciso limpar depois do coiso por não haver contacto directo da mercadoria, digamos assim, com a louça.
As alemãs dividem-se em dois tipos: as iguais às portuguesas, e as que têm uma plataforma para boa exposição da tal mercadoria, porque o pessoal gosta de analisar bem o que o corpo produz para poder contar ao médico ou aos melhores amigos. Uma vez feita a análise detalhada, puxa-se o autoclismo, limpa-se aquela porcaria toda e abre-se a janela, porque está lá um cheirinho que nem vos digo nem vos conto.
As chinesas também se dividem em dois tipos: as que são um buraco no chão (e estas subdividem-se em imundas e muito imundas) (bem, isto foi o que vi há 17 anos – se calhar as coisas entretanto mudaram) e as normais como as conhecemos (mas, no caso de WC públicos, em compartimentos sem porta, pelo que convém levar um guarda-chuva para se proteger dos olhares alheios).
As japonesas, essas, são um prodígio da técnica. Quer dizer, não sei, que nunca fui ao Japão, mas contou-me um amigo que lá foi: estava num café e precisou de ir à casa de banho. Foi, fez o que tinha a fazer, e no momento de puxar o autoclismo viu milhentos botões todos em japonês. Carregou num, e da sanita saiu um repuxo para cima. Assustado, carregou outra vez no botão, e o repuxo redobrou a intensidade e a altura. Cada vez mais assustado, carregou em todos os botões, e aquela sanita transformou-se nos jogos de água do Bellagio em Las Vegas (mas sem música). Desesperado, saiu, pagou o mais depressa que pôde, e fugiu dali com a mulher - quando a água já estava a passar por baixo da porta.

Depois da incursão geográfica, a histórica: o water closet que deu origem à abreviatura que usamos hoje em dia foi inventado por um afilhado da rainha Isabel I de Inglaterra, de nome John Harington, em 1596, que ofereceu um à madrinha para ela pôr no seu Richmond Palace. A malandra da rainha fechou-se em copas, não contou nada aos primos na Europa continental (de onde se prova que já no séc. XVI havia esses Brexits de, com licença, merda), e por algum motivo que desconheço, a invenção não conquistou o mercado, e acabou por cair no esquecimento. De modo que ali para o séc. XVIII, do lado de cá do Canal, a pobre da Maria Antonieta ainda se via obrigada a fazer o que tinha a fazer de cócoras num corredor qualquer de Versalhes. Não admira que tivesse acabado como acabou, coitada: as empregadas de limpeza do palácio revoltaram-se com aquelas porcarias, e o resto é História (sim, anotem: a culpa da revolução francesa às tantas é da Isabel I da Inglaterra). Pela altura em que Maria Antonieta estava a casar com o delfim, já no advento da revolução industrial, alguns engenhocas da Grã-Bretanha (ou lá como se chama essa coisa que engloba a Escócia e a Inglaterra) lembraram-se de começar a trabalhar numa sanita como deve ser, com sifão e autoclismo e tudo. Em meados do séc. XIX, com as cidades em crescimento e o sistema de esgotos em aperfeiçoamento, o seu uso generalizou-se. Hoje em dia todos têm pelo menos uma em casa. Mas pode haver novos desenvolvimentos na sua forma - ultimamente andam por aí a dizer que nos obriga a uma posição pouco ergonómica. Talvez um dia destes passe a ser um buraco no chão, para a gente evacuar
de cócoras, como a Maria Antonieta. Tanta coisa com a República e tal, e vamos acabar todos armados em autênticas princesas. Ou rainhas.
  
O termo “water closet” (“WC”) começou por ser usado para indicar um compartimento reservado onde havia uma retrete dessas com água, em vez dos outros onde havia um buraco que dava directamente para a fossa, ou para um aterro de mato, ou para a fachada do edifício, ou sabe-se lá o quê. O nome apareceu na Inglaterra por volta de 1870, e chegou aos EUA em 1880. Depois foi passando de eufemismo em eufemismo (porque as palavras se dão mal com a escatologia, e mal o eufemismo se apercebe do que está realmente a dizer passa a ser a realidade indizível e inventa-se um novo eufemismo). Tanto quando sei, o eufemismo actual é "restroom" - admito que seja por causa de quem tem no WC de casa um banquinho cheio de revistas, jornais e livros ao lado da sanita, e ali fica sossegadamente a descansar do mundo lá fora. Quando eu era miúda, no Porto, não tínhamos as revistas na casa de banho, mas tínhamos a Enciclopédia Luso-Brasileira à entrada - era agarrar numa e abrir ao calhas, até começarem a bater à porta pancadas desesperadas, "vai ler para outro lado!" (uma pessoa põe-se a ter irmãos do Porto, e dá nisto: não há respeito pelo carácter restroom da coisa, parte-se do princípio que é uma mera "cagadeira").
 
Claro que o primeiro WC não foi inventado na Grã-Bretanha. Os romanos já tinham sanitas públicas, uma espécie de bancos de pedra corridos com aberturas, sobre canais de água corrente. Pergunto-me se teriam também divisórias em madeira para separar uns buracos dos outros, com porta e tudo, ou se iam para lá de guarda-chuva em riste como uma mulher que eu cá sei, na China, no ano 2000.
E antes dos romanos, muitos outros já lá tinham chegado. Actualmente, os primeiros a usar sistemas sanitários com água terão sido povos do neolítico, pouco depois do surgimento da roda.

Falta ainda dizer que há um dia mundial da retrete, o 19 de Novembro, e não é patrocinado pelas empresas de equipamentos sanitários. É mesmo uma preocupação muito séria da ONU, uma vez que 40% da população mundial não tem saneamento básico. 

E eis como acabei de me desgraçar: daqui para a frente vão dizer que sou uma especialista de m... oh, calem-se, não gozem. Pouco barulho. Respeitinho! Isto é tudo cultura geral.



Sem comentários: