03 agosto 2017

com a sorte que tenho, talvez fosse boa ideia tentar o euromilhões

Há tempos atropelei um ciclista. Melhor dizendo: ele é que me atropelou a mim. Mas eu ia de carro e vi-o a dar um salto mortal à minha frente depois de me ter batido, pelo que não vou insistir nesse detalhe.

Começando pelo princípio: desci o Mehringdamm e antes de virar à direita na Bergmannstrasse parei na passadeira para deixar passar toda a gente. Depois de ter desaparecido a última bicicleta, o último carrinho de bebé, o último miúdo em bicicleta sem pedais, todos, olhei para trás e vi um ciclista que vinha muito longe. "Tenho tempo", pensei. Arranquei, e no momento seguinte o homem estava a gritar "hei!" e a fazer o tal salto mortal à frente dos meus olhos horrorizados.
Saí do carro, alarmada. "Matei um homem!", pensei. "Matei um homem!"
No momento seguinte ele levantou-se, e disse: "Desculpe, eu vinha demasiado depressa, não consegui travar!"

(Berlim tem uns quatro milhões de habitantes, e eu arranjei de atropelar o mais honesto deles todos.)

O ciclista que vinha atrás deste era neurologista. Fez-lhe um exame rápido, pareceu-lhe tudo em ordem, mas achámos melhor chamar a ambulância e a polícia. Entretanto prendi o que restava da bicicleta dele a um poste, ele quis saber do estado do carro, eu disse que não sabia e não me interessava, e repeti pela milésima vez "estou tão feliz por você estar vivo!"

A ambulância levou-o, à noite liguei-lhe e ele ficou muito surpreendido por eu me interessar pela sua saúde. Disse que estava tudo bem. Uns dias mais tarde ligou-me a perguntar se podia comprar uma bicicleta usada para substituir a estragada. Uma bicicleta usada!

(A Alemanha tem oitenta milhões de habitantes, e eu arranjei de atropelar o mais correcto deles todos.)

Passados uns dias recebi uma carta da polícia. Avisavam-me que tinham aberto um processo-crime contra mim, acusavam-me de negligência grosseira por não ter respeitado a prioridade de terceiro e ser culpada de um acidente com danos corporais.

Respondi-lhes: "Provoquei o acidente, não nego. Mas da maneira como o descrevem até parece que sou uma terrorista ao volante. Nada disso - sou apenas má em matemática: não contei com o declive do Mehringdamm, e que o ciclista podia ter desenvolvido uma velocidade superior àquela a que estou habituada no Ku'damm, onde habitualmente conduzo."

Recebi segunda carta, informando-me que o processo tinha sido arquivado. Nem sequer me pediram para pagar os 30 euros de multa por ter provocado um acidente, nem nada.



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