16 maio 2016

em Portugal, o Kafka é um menino do coro

(Antes de mais, façamos um esforço para ignorar os nomes envolvidos neste assunto, de modo a podermos pensar com objectividade em coisas muito sérias.)

É o seguinte: no nosso país, como em muitos outros, os cidadãos concedem ao Estado o poder de lhes devassar a privacidade e a intimidade em casos muito especiais, quando há fortes suspeitas de crime. Dado tratar-se de um abuso do Estado contra os mais básicos direitos da personalidade, essa devassa está sujeita a regras muito apertadas. No entanto, recentemente demo-nos conta de que no nosso país é possível que jornalistas tenham legalmente acesso a material muito sensível, recolhido segundo essas apertadas regras, para a seguir publicarem acusações contra uma pessoa que nem sequer está na mira do Ministério Público. Desculpem, vou repetir: apesar de o Ministério Público entender que não há motivos para incriminar e levar a tribunal determinada pessoa, ela vê-se acusada num tribunal popular que a julga com base nas insinuações de um jornal que se diz omnisciente mas não consegue apresentar provas concludentes do que afirma (claro: se as houvesse, o Ministério Público constituía a pessoa como arguida). Mas ainda pior é possível: se essa pessoa, para se defender, pedir ao Ministério Público acesso ao processo de modo a conhecer a base da acusação que lhe foi feita pelo jornal, esse pedido é-lhe recusado porque - quem diria? - aquele material está sob segredo de Justiça. Entretanto, parte do tal material (que, recorde-se, foi recolhido no âmbito de uma investigação que obedece a regras rígidas e nem sequer tinha esta pessoa como alvo) já é exibido, de forma manipulada, em vários meios de comunicação social.

Diz-se que somos uma Democracia recente, e que ainda estamos a ensaiar passos. Penso, pelo contrário, que quarenta anos não são tão pouco como isso, que já começa a ser tempo de sermos exigentes com o país e connosco em vez de nos embalarmos nesta atitude de compreensão e derrotismo, e que não podemos tolerar que se ensaem passos na direcção errada. A direcção que este caso toma é fatal. Um jornal entende que se pode substituir à Justiça: começa por lhe dizer o que ela deve fazer e, ao ver que não é obedecido, arma-se em herói justiceiro e castigador. Não o confundamos com um whistle blower - esse fornece à Justiça os factos que ela desconhece. Aqui, quem desconhece os factos é o jornal, que os vai buscar à Justiça e, rejeitando o veredicto de não-relevância do único agente do Estado de Direito que tem o direito de decidir sobre isso, publica calúnias alegando que "sabe coisas" - o que dá origem a um julgamento popular. Por outro lado, ao mesmo tempo que se põe descaradamente acima da Justiça, o jornal furta-se às obrigações mais elementares do jornalismo, não cuidando de ouvir a pessoa que acusa para lhe dar a oportunidade de contraditório,

Sinceramente, não sei como é que o Ministério Público se deixa desautorizar desta maneira, e como é que o caso não foi ainda ao Parlamento. Ainda não perceberam que estamos perante um ataque muito sério ao regular funcionamento das instituições que são a base de qualquer Democracia?

--

Neste momento está a acontecer à Fernanda Câncio.
Independentemente dos sentimentos de ressentimento e vingança que algumas pessoas possam ter em relação a ela, não nos iludamos: se permitirmos isto, deixamos uma porta aberta para que aconteça a qualquer um de nós.

Alguns dirão "ai, mas eu cá sei escolher as pessoas com quem me dou". Não teria tanta certeza.
Melhor será passar a exigir sempre cópia da declaração de impostos a todos os amigos que nos convidarem para um almoço ou nos derem um presente de valor.
(É esta a sociedade que queremos ter?)

Outros dirão "quem não deve não teme". Pois, fiem-se na Virgem...

--

Quem quiser ler o texto da Fernanda Câncio: o processo marquês e eu (e a visão).
Quem quiser ler a crítica que o Daniel Oliveira faz ao Correio da Manhã e à Justiça portuguesa (explica muito melhor que este meu post): Fernanda Câncio e os atalhos do "Correio da Manhã".
Quem quiser mesmo ir coscuvilhar no que nunca devia ter passado ao domínio público, mas agora que o mal está feito convém informar-se para além das insinuações do Correio da Manhã: O que liga Fernanda Câncio à Operação Marquês? 
Quem quiser ouvir o Ricardo Araújo Pereira a dizer que isto parece o processo de Kafka do séc. XXI: Governo Sombra de 15.05.2016 (a partir de 7:34)
(Ontem escrevi o título deste post, e fiquei toda satisfeita com ele, achei-me muito original. Esta manhã vi o Governo Sombra, e aparece-me o Ricardo a dizer mais ou menos o mesmo. Humpf! Das duas, três: ou é sinal de que eu sou um génio, ou o RAP está a perder qualidades, ou então o espírito do La Palice caiu sobre nós os dois.)


Sem comentários: