26 maio 2015

tudo como dantes na Filarmónica de Berlim

Voltei à Filarmonia, e foi na semana do famoso debate, quando os filarmónicos passaram doze horas fechados a debater um rumo para a orquestra. Aparentemente, o futuro depende do maestro que substituirá o Simon Rattle, e os músicos estavam divididos entre o regresso ao passado e a continuação da senda futurista do actual maestro. Três dias depois estavam de novo reunidos na sala grande, a fazer música sem costuras nem fracturas. Tudo como dantes, e nem outra coisa seria de esperar.

Neste concerto, o maestro era o Paavo Järvi, a solista era a Yuja Wang, que se estreava com a orquestra, e com uma peça muito exigente: o concerto nº 2 para piano, de Prokofiev. Ela conseguiu o facto extraordinário de fazer brotar música daquelas piruetas de dificílima técnica. Que é como quem diz: Prokofiev não será o maior amor da minha vida, musicalmente falando, mas a Yuja Wang está cada vez mais na minha lista de "a não perder".

Esta pianista tem uma timidez em palco que contrasta com a sua excelência musical e os vestidos vertiginosos que mostra (ah, os vestidos da Yuja Wang! Alguma coisa está a mudar nos palcos da música clássica). Uma timidez que quase dói: mal termina a peça, levanta-se de um salto, agradece velozmente, e foge do palco. Desta vez foi difícil fugir porque o público insistia em aplaudir entusiasticamente. Ela voltava, fazia uma vénia, e voava para os bastidores. Uma e outra vez. Até que entrou com ar decidido, sentou-se ao piano, o público acalmou, e ela tocou as primeiras notas da Marcha Turca, de Mozart. A sala largou a rir em surdina. Pior que isto, só mesmo os "martelinhos", terão pensado todos. Mas num instante deixámos de rir, porque até nos faltou o ar. A reinvenção da Marcha Turca:


 

Neste site pode-se ver um trailer com excertos das três peças do concerto (e o vestido...).

Do programa, a peça que mais me tocou foi a primeira sinfonia do Shostakovich. Como é que um rapaz de 19 anos, pobre e com fome, deprimido e perdido na enorme cidade de Moscovo, consegue fazer música de tal clareza e expressividade?



Do lugar onde fiquei, por trás da orquestra, podia ver o Paavo Järvi de frente, a sua tranquilidade, o seu charme. Em termos de expressão corporal, podia ser um bom substituto para o Simon Rattle. Nem sei porque é que os filarmónicos discutem tanto o futuro e o passado e se esquecem deste critério essencial para um maestro: a graciosidade da sua dança. Por outro lado, foi pena o solista do clarinete ser o Andreas Ottensamer, e eu, do sítio onde estava, só lhe ver as costas. Se me deixassem mandar, inventava uma sala de concertos com palco giratório, para o público poder ver tudo. Ou então (versão mais económica) punha câmaras a filmar os rostos de frente e a projectar para écrãs. Mas por enquanto não se pode ter tudo. Pelo que vi as costas dos solistas - o Ottensamer no clarinete, o Emmanuel Pahud na flauta, o Stefan Dohr na trompa, o Bruno Delepelaire no violoncelo, e o perfil do Noah Bendix-Balgley com o seu violino -, e assim talvez tenha até ouvido melhor a música deles, a perfeita beleza da música deles e do Shostakovich.

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Tudo como dantes? Talvez não. As pessoas sentadas nos bancos do coro por trás da orquestra estavam demasiado bem-dispostas. Uma delas (não digo nomes, que não sou pateta a esse ponto) até se lembrou de sugerir que o senhor dos tímbales se chegasse um bocadinho para o lado, para podermos ver melhor a Yuja Wang. E havia um músico que tinha meias pretas, sim, mas com um sinal de trânsito, daqueles amarelos, a avisar que há cangurus a atravessar a estrada.
O público berlinense, esse, continua igual. Quando, no intervalo, um músico deixou cair um dos pratos, essa performance tão artística foi alegremente aplaudida. O pobre desastrado curvou-se numa vénia delicada, o público aplaudiu com mais entusiasmo ainda.

2 comentários:

snowgaze disse...

Adorei essa marcha turca, no final os dedos (e as mãos) mexem tão depressa que o vídeo quase não consegue acompanhar. :)

Helena Araújo disse...

Nem o vídeo, nem os meus neurónios... :)