01 outubro 2012

aquilo a que temos direito (2)

Em jeito de resposta a comentários ao post anterior:

1. A barulheira das reacções ao parecer do Conselho Nacional de Ética surpreendeu-me por vários motivos:

- Pareceu-me que as pessoas desataram a gritar, mesmo antes de lerem o parecer. É verdade que as declarações publicadas não primaram pela sensibilidade, mas o parecer em si não merecia esta reacção - insiste na necessidade da transparência, sugere que se olhe para a experiência de outros países, como o Canadá (vá lá que não disseram o Ghana...), e propõe que se use o mais barato dos melhores, o que me parece uma solução razoável. O Paulo Pedroso leu o parecer, e chegou à conclusão - como podem ler aqui - que a proposta é razoável, mas fugiu ao debate ético e dá um cheque em branco ao governo. Não sei como aconselhar "o mais barato dos melhores" e "mais transparência na decisão" seja um cheque em branco ao governo, mas deixo aí o link para quem o quiser ler e debater.

- O tipo de argumento usado ("a eutanásia dos pobres", "o Mengele não faria melhor") lembra-me a história de Pedro e o lobo: se invocam o nome de Mengele para isto, que nome usarão para reagir caso o SNS português seja alvo de reformas como o britânico?

- Vivo num país onde há dezenas de anos se diz que o sistema está a chegar aos seus limites, e que mesmo que se aplicasse todo o dinheiro disponível na saúde, não seria possível financiar tudo o que seria desejável, pelo que é preciso fazer escolhas e tomar decisões. Há cerca de dez anos começaram a aumentar as contribuições e a reduzir o leque de prestações - e as pessoas aceitam, porque percebem que essa é a única maneira de preservar o sistema público de saúde.
Para mim, é um dado adquirido que não há recursos suficientes, e que não posso exigir da minha sociedade solidária que invista na minha saúde para lá do razoável. (OK, depois vamos discutir - de cabeça fria e sem chamar para aqui o Hitler - o que é "razoável".)

- Pergunto-me em que país vivem as pessoas. Porquê esta gritaria agora? Porque é que se lembram do Mengele a propósito de três medicamentos caríssimos, e não dizem nada quanto à duração da lista de espera para operar tumores malignos? Qual é o período médio de espera para essas operações, hoje em dia? Na Alemanha espera-se no máximo uma semana; em Portugal, uma amiga minha esperou meio ano (podia ter metido uma cunha para passar à frente na lista, mas não meteu - e só esta frase seria motivo para muita gritaria, mas estranhamente ninguém parece muito incomodado com o sistema de cunhas que acompanha o SNS).

Contudo, compreendo em parte esta reacção: num país em regime de austeridade e consequente recessão, onde as pessoas têm preocupações realmente existenciais e todos os dias contam receber mais notícias terríveis, aparecer alguém a falar de forma insensível e pouco articulada sobre a necessidade de poupar no sector da Saúde faz soar todas as campainhas de alarme.
 

2. Falaram em humanismo, e pediram-me filosofia.

Em termos de filosofia, sou muito Sócrates:  só sei que nada sei, e por nada deste mundo queria fazer parte dessas Comissões de Ética, ou ser Ministra da Saúde. E sou um bocadinho Diógenes: a filosofia começa em casa. Mais concretamente: eu não quero que os meus filhos vendam a casa para pagarem uma remota possibilidade de me prolongarem a vida duas semanas ou dois meses. Do mesmo modo, não quero exigir da minha sociedade solidária um esforço exagerado para me oferecer o melhor de tudo, em termos de saúde. Entre investir 100.000 euros nas últimas semanas da minha vida, ou (isto sou eu outra vez a delirar) mandar vir por uns tempos uns médicos búlgaros que operem no turno da noite, de modo a reduzir substancialmente o tempo de espera para operações de tumores malignos, prefiro que me deixem morrer em paz e fiquem lá com os 100.000 euros para fazer essas operações.

O Philippe Ariès tem um livro muito interessante, "História da Morte", onde ilustra o modo como as sociedades olham para a morte dos humanos. Enquanto o homem medieval reconhecia o momento em que a morte chegava, e o enfrentava com naturalidade, as pessoas do nosso tempo morrem  não porque a morte faça parte da vida, mas porque a medicina falhou. O que explica que nos últimos dez dias da vida de uma pessoa se gastem enormidades em medicamentos e máquinas. Claro que nunca sabemos quando começou a contagem decrescente dos dez dias (ou não queremos aceitar) - o que torna a decisão de desistir muito complicada. Mesmo assim, convém termos isso presente: a vida humana tem um valor inestimável, mas nem todo o dinheiro do mundo nos livra da nossa morte.
A propósito: uma amiga falou-me do conselho que lhe deram no hospital: "leve o seu marido para casa, porque a gente aqui não o pode ajudar, e ao menos ele sempre morre ao lado dos que o amam". Vão dizer que isto é uma medida economicista, ou de pura humanidade?

3. Disseram que todos têm direito a iguais cuidados de saúde, independentemente da idade e do meio social.
Quanto à idade: sabemos que não é assim. Se houver um coração para transplantar, dão-no à pessoa de vinte anos e não à de oitenta. Se houver apenas um pulmão artificial disponível, entre mim e um miúdo de cinco anos vão escolher o miúdo de cinco anos. Mesmo que eu tenha um seguro de saúde privado, o tal coração e a tal máquina serão dados a alguém mais novo e com mais hipóteses de poder aproveitar o uso desse bem escasso (há regras que só o crime pode contornar).
Quanto ao meio social: pode ser influência do que tenho ouvido na Alemanha, mas sinto-me bem com isso - a sociedade garante um standard de elevada qualidade; quem quiser mais que isso (exames de rastreio com mais regularidade que a garantida pelo SNS, quarto de duas camas no hospital, determinados tratamentos dentários, medicamentos de ponta - que, diga-se de passagem, nem sempre são sinónimo de qualidade -, tratamento hospitalar monitorado pessoalmente pelo chefe de serviço, determinado tipo de óculos, etc.) tem de fazer um seguro complementar. Se é fundamental que se assegure um nível muito digno de cuidados de saúde para todos, já tenho as minhas dúvidas que seja necessário e viável dar a todos aquilo que os mais ricos podem comprar.
Parece-me que temos de ter cuidado com os princípios, e ter presente que o óptimo pode ser um inimigo mortal do bom. E o bom é o Estado Social que ainda temos, e que é o possível tendo em conta a nossa situação económica (e nem vou falar da financeira).

4. Falaram em corrupção dos políticos, má distribuição de recursos, má gestão, necessidade de impedir as fugas aos impostos, etc. O costume.
Não vou discutir isso - muito há para fazer. Mas neste momento havia que responder a uma questão concreta: que critérios definir para o uso de três medicamentos que no ano passado custaram ao SNS 500 milhões de euros. Não podemos adiar esta resposta até termos cumprido a agenda moral e social que, como povo, andamos a empurrar com a barriga há centenas de anos.  

22 comentários:

jj.amarante disse...

Estava a correr tudo tão bem neste texto e de repente tropeço no último parágrafo em "500 mil milhões de euros"! Deve haver aqui um erro de 3 ordens de grandeza!

Helena Araújo disse...

Claro que há um erro - que disparate!
Obrigada, vou já corrigir.

mdsol disse...

Abençoada.

:)))

Helena Araújo disse...

mdsol,
...e lá fui eu reler o que escrevi, para ver por que motivo havia de merecer tal comentário! :)

Carla R. disse...

Por muito que queira ler o tal próximo post sobre Praga (cidade que me mudou a vida e que não conheço quase nada) tenho uns pontinhos a acrescentar, coisas cosméticas :

- Muito engraçado teres mudado o meu exemplo da questão da morte ou vida dos filhos, para ti própria.

- Quando houve aquelas frases bonitas sobre a culpa dos preguiços do sul, houve um estudo sério que mostrava que até trabalhavam mais do que os do norte, e que uma das grandes diferenças que os distinguia, era que os do norte apontavam em investigação e investimento. Eu sei que estamos em austeridade, mas existem investimentos publicos que devem ser encarados como tal, e não como mera despesa. Pegar nesses tais tratamentos carissimos e investigar até ficarem mais acessiveis. Não gosto desta nossa ideia de estar dependentes de uma industria farmaceutica, que utiliza mais depressa calculadoras, do que ética.

- Corrupção, má gestão e abusos, gostava que se tivesse começado por aqui.

- Comunicação desastrosa, não quero sequer pensar como se sentiram as familias e as pessoas que estão nesse caso.

Helena Araújo disse...

Mas viste que entre mim e o teu filho, cedia sem hesitações o pulmão artificial ao teu filho?

Claro que mudei o exemplo para mim própria, (ou melhor: mudei do que eu quero dar a alguém que amo muito para o que eu quero exigir daqueles que amo, para me prolongar a vida por uns momentos), porque acredito que o nosso SNS faria tudo para salvar os nossos filhos. Já as pessoas que estão iniludivelmente perto da morte...
(Por acaso agora fico na dúvida: será que o SNS faz mesmo tudo pelos nossos filhos? Contam-me casos, no Norte de Portugal, que me fazem desconfiar bastante. Mas, lá está: se o SNS não dá o essencial, não percebo esta vaga de prostestos devido a um parecer sobre 3 medicamentos caríssimos, e o silêncio em relação ao resto)

Esta discussão refere-se a dois medicamentos dados a doentes terminais e um dado a doentes com reumatismo. E o racionamento já se faz (disseram-me que na área dos doentes reumáticos, onde os medicamentos são caríssimos, já se faz desde sempre) - o que o parecer muda é a necessidade da transparência dos critérios e da comunicação com o doente.

Quando falam das frases bonitas sobre os preguiçosos do sul tenho sempre de lembrar que a Merkel ouviu poucas e boas por causa dessas frases. Inclusivamente do seu próprio partido. Se é para ficar como um ferrete, que fique como um ferrete completo: na Alemanha ouve um intenso debate público para contradizer essa frase da Merkel, e - se estou bem informada - ela nunca mais se lembrou de repetir a gracinha.

Quanto à investigação e ao investimento: sim, senhora. Até me lembro que quando a Alemanha furou os limites do contrato do euro e desatou a cortar os gastos do Estado, para voltar a um limite aceitável da dívida pública, decidiram que havia sectores estratégicos para a sociedade, nos quais não se faria poupanças: educação e investigação. E na educação incluía-se o apoio às crianças das famílias pobres, para lhes dar mais possibilidades de escapar à pobreza.

Contudo, pergunto: é realmente importante que Portugal gaste milhares de milhões a experimentar medicamentos novos? Não é mais lógico que sejam países com mais dinheiro a gastar esse dinheiro, e a passar à comunidade de médicos as informações com as conclusões?
Estou a pensar no tal medicamento de que falei: custa 100.000 euros, e aumenta a possibilidade de cura de um cancro de 10% para 15%. Estão a dá-lo em todos os casos pertinentes num hospital universitário, para o conhecer melhor (efeitos secundários, casos em que funciona melhor, casos em que não ajuda). Mas só o dão nesse hospital, no âmbito de um estudo. Não o estão a dar em todos os hospitais regionais em nome da igualdade de tratamento. Além disso, estes medicamentos novos podem ser muito agressivos, e têm o risco do desconhecido. As pessoas podem agarrar-se a eles como uma última tábua de salvação, sem saber que isso lhes pode implicar um grande sofrimento acrescido.
Como dizia no primeiro post sobre este assunto: não é simples.

Helena Araújo disse...

No facebook, nos comentários a esse primeiro post, a Maria João Pires disse algumas coisas importantes para esta discussão. Vou copiar para aqui:

"A maior parte das pessoas parece esquecer-se que o racionamento existe, ponto. Pense-se, por exemplo, nas terapêuticas biológicas usadas em reumatologia. Praticamente todos os doentes beneficiariam com o seu uso mas o preço é incomportável e, portanto, faz-se seleção de doentes . O q este parecer diz, no fundo, é q esses critérios devem ser transparentes e não feitos de forma q pode ser aleatória, depender de um médico, de um serviço, de uma administração hospitalar. Isto é, digo eu, a defesa de uma política de saúde transparente qdo defende q se deve passar do "racionamento implícito" para o "explícito-" /conceitos usados no mundo inteiro para discutir estas temáticas). Mais, a posição da ordem dos médicos foi de uma miserável demagogia: desde sempre q estas temáticas são debatidas interpares (a título de exemplo veja-se este texto com 10 anos ( http://www.spreumatologia.pt/sites/spreumatologia.pt/files/pdfs/ARP_2002_2_77_Editorial.pdf ), o problema parece estar, portanto, no facto da populaça ter acesso à discussão. Mais, há nesta problemática que contar com uma coisa q se chama obstinação terapêutica e que é em todos os países ocidentais considerado má prática (e em alguns proibido explicitamente por lei)."

A obstinação terapêutica também é um dos aspectos da questão - e é um aspecto importante, mas implica que tu consigas acreditar na boa-fé do médico que te trata, e não vejas nele um ponta de lança da tesoura do ministro Gaspar.

Mais ainda (continuo a copiar comentários da Maria João Pires):
"E há outras discussões possíveis socialmente mesmo num contexto de completo de desafogo económico:por exemplo, o que é mais socialmente responsáve e defensável, usar terapias de ponta com baixíssima percentagem de sucesso em doentes terminais ou investir os mesmos recursos em cuidados paliativos? a resposta não é simples e de certeza a unanimidade não reinará. Para terminar: podemos desconfiar das intenções do governo ao pedir este parecer? Podemos e devemos. Podemos presumir que o Conselho adoraria ter sido consultado noutras circunstâncias sOcio-económicas? Aposto que sim, mas infelizmente o conselho é obrigado a responder às perguntas q o governo lhe faz no momento em q este as faz. Em suma, noutro contexto este parecer passaria por aquilo q é, essencialmente um exercício de bom senso..."


Helena Araújo disse...

Corrupção, má gestão e abusos: é um ponto fundamental, mas neste caso é um desvio da questão central, que é a dos limites do SNS. Mesmo que tu limpes o sistema da corrupção e da má gestão, libertando dez ou vinte por cento do orçamento (não sei - atirei os números à sorte) para mais medicamentos e mais máquinas, mesmo assim chegas a um ponto em que vais ter de perguntar quais são os critérios para dar ou não dar determinado medicamento a determinada pessoa. Ou o custo do SNS pode crescer sem limites, em função das possibilidade e das necessidades ilimitadas? Se o SNS custar metade ou 70% do orçamento do Estado, onde se pode poupar e como deve ser distribuído o pouco que resta? A Defesa já tem um peso muito reduzido no OGE (actualmente é apenas 10% do SNS), e os tais carros caríssimos de que a sociedade pode abdicar são uma ridícula gota de água no oceano do OGE. Que pode ser poupada, claro, mas continua a representar uma parcela ínfima de poupança.

Comunicação desastrosa para os dois lados: tu vês as pessoas que têm na família um doente terminal a quem o SNS não quer dar um medicamento que custa cinquenta ou cem mil euros; eu vejo as pessoas que não têm meios para ir ao hospital fazer um exame, porque não podem andar, têm uma reforma de 200 euros que não lhes permite pagar um táxi e o SNS entende que no caso não há motivo para a transportar em ambulância. Essas pessoas devem sentir-se completamente agredidas pela discussão que está a decorrer.

***

Praga: tu não me assustes! Se sei que é uma cidade tão especial para ti, e se me lembro como falaste da tua ida à Rússia, perco a coragem para escrever seja o que for. Já sei que me vou desgraçar... ;-)

Shyznogud disse...

Pequena precisão a um comentário teu, Helena. As terapêuticas biológicas não se usam só em reumatologia, tb se usam, por exemplo, em dermatologia (no tratamento da psoríase entre outras patologias).

mdsol disse...

Olha Helena, para mim cada vez mais é óbvio que os valentes, os que fazem a diferença é quem age com maturidade, responsabilidade e um elevado grau de consciência e é capaz de concretizar estas qualidades em modos concretos de olhar os problemas. Abençoada, sim!

Helena Araújo disse...

shyznogud,
anotado.

mdsol,
:)

mdsol disse...

Ui, o português naquele meu comentário ali em cima... desculpa, Helena. É da pressa e de isto ser feito em regime "intervalado" com trabalhinho do bom!

Luís Novaes Tito disse...

Ainda continuo à espera que a minha alma humanista se torne racional.
A coisa tarda!

Helena Araújo disse...

mdsol,
aproveito o "não te preocupes com isso" para acrescentar: "e sou só eu?! cadê os outros?" - eu sou apenas mais uma, e nem de longe entre os melhores.

Luís,
não temos de concordar, nem temos de olhar para as coisas pela mesma perspectiva.
Provavelmente só discordamos no grau: o Luís quer um sistema que dê mais a todos. E eu, que também gostaria de algo assim, pergunto se nos é possível hoje pagar um sistema assim.

Luís Novaes Tito disse...

O que gostaria era que a Ética não tivesse sido envolvida nisto.

Um contabilista, como é o nosso Ministro da Saúde, com um parecer daqueles dado por uma Comissão de Ética é muito bem capaz de mandar abrir os fornos.

Mas já disse que me calo sobre o assunto.Pelo menos até que consiga fazer racional o meu humanismo.

Gi disse...

Olá, Helena, gostei muito deste teu post, escrito com tanta razoabilidade.
Penso que uma razão pode ser que tu, casada com um médico, vês o tema de várias perspectivas.

No meu hospital, entretanto, há médicos desesperados por não poderem continuar a oferecer certos tratamentos a alguns dos seus doentes, independentemente da idade, estatuto social ou o que seja, destes, por pura e simplesmente não haver dinheiro para o hospital os comprar e fornecer.

Carla R. disse...

Percebo a questão do racionamento, do não estica para todos. Percebo que o buraco que a corrupção e os abusos cava possa ser menor do que o do SNS. Mas existe aqui também uma questão de principio e de moral, enquanto não se fizer isso dever-se-ia ter vergonha para pedir outro tipo de despesa. Uma questão de ética.
Em relação à investigação, discordo apenas em parte, que fosse proporcional, seja. Olha aqui o compromisso monstro que te estou a dar de bandeja.

Praga, estava inundada, passei o tempo todo à espera que a agua descesse e fosse possivel visitar alguma coisa. Estavam a evacuar a cidade e eu estava a tentar não sair dali. Pareceu-me bonita.

Shyznogud disse...

Luís, se não se envolver a ética nisto é q é o reino da selva (aconselho a que procurem os "consensos" publicados em revistas de reumatologia sobre as doenças em q se usam as terapêuticas biológicas - volto a dizer q é capaz de ser a especialidade onde todas as recomendações do parecer já estão aplicadas - para que percebam bem que nenhuma destas problemáticas é nova. Nem as problemáticas nem os argumentário

Helena Araújo disse...

Gi,
olha que não é por ser casada com um médico. É sobretudo por isto ser objecto de debate frequente nesta sociedade: se queremos ter mais SNS, temos de pagar mais impostos, porque o que pagamos não chega para aquilo que queremos receber.
Mas é verdade que também ouço muitas conversas sobre estas coisas, depois na vida real: os médicos que a meio do trimestre começam a não receitar medicamentos caros porque já atingiram o seu plafond de defesa para esse período, o pediatra obrigado a "despachar" os miúdos a toda a velocidade porque a partir da terceira consulta no trimestre só recebe da caixa algo como 3 euros por consulta, coisas assim.
O sistema aqui também não é perfeito.

O que se passa no teu hospital é que é o cerne do problema. Andamos aqui a discutir medicamentos caríssimos para doentes terminais, e esquecemos que a dura realidade é outra. É, como dizia alguém no blogue da Rita Dantas, agulhas que partem e luvas que rebentam porque não há dinheiro para comprar material de melhor qualidade.

Helena Araújo disse...

Carla,
parece-me que andamos em círculos, apenas porque eu aceito que as fronteiras do possível (do pagável) sejam mais apertadas, e definidas hoje em função da nossa realidade actual. Mas também tu aceitas um limite para o possível, ou não?

Estamos de acordo que é urgente combater a corrupção e o mau uso dos dinheiros do Estado. Mas esse é um longo combate, e quando (se...) chegarmos ao fim, vamos ter na mesma de decidir se fazemos as turmas mais pequenas, ou se aumentamos o rendimento mínimo de inserção, ou se pagamos o tratamento a alguns desses doentes. O que decidimos?

Sobre a investigação: o ideal era haver fundos comunitários e investigação comunitária. Não sei se há. Mas parece-me brutal que Portugal tenha de investir o pouco dinheiro que tem a estudar um medicamento caro. Sobretudo se isso puder ser feito noutras comunidades científicas com mais dinheiro. Pois, eu sei: e os nossos cientistas?
Pois não sei.

Nan disse...

Tem toda a razão, é mesmo por isso que gosto de cá vir. Claro que não apaga o receio que expressei no post acima (e portanto posterior, mas eu vou lendo de cima para baixo...), mas foi muito bom de ler. Tem razão, quantas vezes é mais humano deixar a pessoa morrer em paz! Afinal morremos todos, também nos devia ser deixado algum controle sobre o final da nossa vida.

Helena Araújo disse...

Nan,
a frase "afinal morremos todos" é uma grande verdade, mas há que ter cuidado para não se tornar uma frase cínica que deixa morrer os mais pobres e os mais frágeis.
No fundo, é como rematei no primeiro post desta série: nada disto é simples.
O importante (e muito difícil, sobretudo em tempos de crise) é a sociedade saber quais são os seus princípios inalienáveis, e orientar-se por aí.