11 maio 2012

passeando por aí

Passeando por aí, encontrei um filme recomendado pela Jonasnuts, um caso de animação muito bem misturada com o poema:




Noutra curva do caminho, este texto do Tolan, que copio integralmente porque quero voltar a ele uma e outra vez:

o fantasma de pijama

Ler as crónicas do Miguel Esteves Cardoso a propósito do cancro da mama que atacou a sua mulher Maria João e que, entretanto, já criou metástases no pulmão e no cérebro, mexeu comigo. Estão lá as descrições da radioterapia no IPO, a neurocirurgia do hospital de Santa Maria e aquela sensação de passar para um negativo da vida. O meu pai morreu com um tumor cerebral em Fevereiro de 2008, um ano depois do diagnóstico. Eu escrevi, no blogue que tinha então, vários textos sobre isso, desabafos. Se por um lado sentia algum receio de exibicionismo, por outro lado era uma necessidade, ajudava-me (este não foge à regra) e podia ajudar outras pessoas apenas pela ideia de partilha. Foi um inferno mas foi mais duro para a minha mãe que era casada com o meu pai há mais de 30 anos. O diagnóstico que recebemos logo depois da primeira biopsia era de um ano de vida no máximo e a opção que ficou limitava a escolha entre mais qualidade e menos tempo, ou retirar-lhe um bloco do cérebro para viver mais uns meses como um vegetal. Se o diagnóstico tivesse nem que fosse 0,1% de esperança, ter-me-ia agarrado a isso com unhas dentes e espero que ela exista no caso da Maria João. No do meu pai não tinha e havia que encarar isso de frente. Os amigos e familiares mais próximos entendiam a situação, mas as pessoas de uma esfera mais distante tinham dificuldades. Não por culpa deles (bem intencionados) mas por não termos a crueldade de encavacar aqueles que, cheios de boas intenções, perguntavam se ele “está melhor” de um glioblastoma agressivo. As pessoas também precisam de uma reserva de fé para as suas próprias vidas e temos de ser modelos.
No meu local de trabalho, em 20 e tal colegas, talvez só 2 ou 3 mais próximos soubessem da minha situação familiar, para preservar a normalidade. Lembro-me que um dia tive mesmo de calar uma dessas pessoas que me perguntava pelo meu pai todos os dias e tive de lhe dizer não tem cura, é certinho que vai morrer e ela ficou meio em estado de choque por eu estar a fazer o start up ao windows enquanto lhe dizia aquilo mas depois pelo menos deixou-me sossegado a mim, ao meu pai e ao nosso glioblastoma de estimação. A morte foi varrida das casas para os hospitais e temos uma relação algo neurótica com ela. Se alguém sobrevive a uma doença é porque a venceu. Venceu a adversidade. Não consigo pensar assim, uma vez que implica que os outros, os que morreram, não venceram. A vitória é relativa, cada um terá a sua. A minha será não ser maricas nestas ocasiões porque era precisamente esse o meu instinto. Uma vez, em Santa Maria, fiquei petrificado a ver o meu pai ter um ataque de epilepsia, nem me consegui mexer e depois dos enfermeiros se precipitarem sobre ele, saí da sala e vim fumar um cigarro na rua, a tremer. A minha mãe não era mariquinhas, fazia tudo, assistia a tudo, tratava de tudo. Na neurocirurgia lembro-me de ver um miúdo magrinho e franzino, com cicatrizes da operação no crânio e uns olhos enormes. Andava por ali a arrastar os chinelos, curioso, a espreitar para os quartos, como um pequeno fantasma de pijama extralargo. Os pais ofereciam-lhe peluches e forçavam sorrisos debaixo daquelas luzes néon frias. Ele tinha o mesmo tipo de tumor do meu pai. Apesar de imagens assim serem provavelmente comuns em sítios assim, não são comuns para quem neles entra pelas primeiras vezes. E o certo é que saía de lá com a sensação de ver o mundo todo do avesso, como uma criança de seis anos que está a ser traumatizada com filmes do Ingmar Bergman e do Romero.
O que é a vitória? Condicionam-nos para as vitórias erradas toda a vida. Não ser feliz e são é apenas um dos fracassos. Os modelos são de saúde e força. A publicidade vende uma felicidade de plástico, impossível de atingir, a tecnologia faz progressos diários mas a maior parte das vezes fúteis, é ela que cria a sua própria necessidade: precisamos de mais memória, mais ecrã, mais comunicação e por aí fora. Parece que resolvemos tudo ou estamos em vias de resolver. E depois, no que respeita a cancro, apesar dos tímidos avanço da ciência, mergulhamos numa espécie de obscurantismo primitivo, num grande mistério que decorre com regularidade em locais como o IPO ou a neurocirurgia de Santa Maria. Depois do funeral, os dias seguem-se, indiferentes, fica um buraco, um vazio. Se tivermos de pensar em coisas positivas disto, há algumas. A minha mãe ficou muito mais forte. Também se descobriram amigos novos e uma solidariedade até ali invisível. De facto não estamos sozinhos, é isso que sinto ao ler uma crónica do Miguel Esteves Cardoso sobre a sua querida Maria João ou como me sentia na sala de espera da radioterapia do IPO que nunca estava vazia. Também se relativiza mais a noção de "ter azar" ou outro tipo de desgostos como aqueles próprios dos desamores. O funeral é bonito e catártico, aparecem pessoas de que gostamos sem termos de as convidar como sucede nos casamentos e nos aniversários, conhecemos outras pessoas que gostavam do nosso pai e que estão, misteriosamente, ali, vindas de um passado que nos é desconhecido. De resto não se aprende muito. Pode-se pensar numa revelação do que é importante na vida e de todas essas tretas, de sentimentos que muitas vezes se encontram diluídos porque as ambiguidades próprias das relações humanas, especialmente entre família, desaparecem perante o fatalismo da separação em vida. Assim, a sensação de estar sentado ao lado do meu pai a ver as folhas de um pomar a agitarem-se com o vento e cães a correr, passa de visita de rotina de domingo, para o grau de momento sagrado. Mas não é uma lição necessária, é até bastante dispensável. A consciência do momento sagrado advém da consciência da sua inevitável perda. Se para essa consciência é necessário pormo-nos a pensar que todas as pessoas que amamos podem morrer a qualquer momento e que caminhamos sobre o gelo fino da saúde, vamos ser, no mínimo, uma companhia um pouco deprimente. Só somos eternos quando esquecemos que somos mortais. Gostava muito de poder dizer que uma coisa dessas faz uma pessoa ficar mais sábia mas fiquei sem vontade de fazer perguntas, eu que fazia tantas e pensava tanto. Desde 2008 que não meto os pés num médico porque acredito que quando estamos fodidos eles não nos conseguem ajudar e só nos vão dizer para deixarmos de beber e de fumar. É irracional, eu sei e estou a tratar disso. Abrir a caixa de correio tornou-se um suplício porque detesto essa ideia de existir um mundo que exige coisas de mim mas depois não consegue curar a merda de um cancro a um filho, quanto mais a um pai. Às vezes dou comigo melancólico em momentos felizes e simples porque não os posso partilhar com ele e queria, como quando o Benfica joga bem. Ele ia gostar muito da Plaft sem o admitir e depois ia manifestar-me a sua perplexidade por ela gostar de mim, ia tentar descortinar o seu problema, alguma coisa que explicasse aquela improbabilidade. Tendo em conta a personalidade de ambas as criaturas, não me custa adivinhar que em pouco tempo iriam interagir num tom sarcástico tendo por alvo a minha pessoa amuada e as suas idiossincrasias. Também ia gostar do carro alemão sem o admitir e ia manifestar a sua perplexidade por me terem dado um carro assim, quem é que eu tinha enganado, quando é que vão descobrir. Depois ia abrir e fechar a porta para ver se o fabrico é bom, examinar o motor, tecer considerações obscuras de engenheiro, mexer nas coisas perante os meus protestos, com sorte não me desmontava aquilo às peças para examinar e descobrir falhas ou sinais de má manutenção. E pronto, este texto não tem conclusão, mas há temas assim também e uma pessoa se quer conclusões depois acaba por não começar nada.

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